Abro a geladeira e passo alguns segundos decidindo o que vou comer, o que não vou comer e o que já deveria ter sido jogado fora. A voz dela sugere: ‘Leite, pão, ovo e laranja’; eu olho pra trás e constato sua translúcida e flutuante figura.
‘Oi vó’
‘Oi filho’.
Pego pizza gelada mais a coca-cola e boto na mesa. Ela reclama e reclama e eu não faço nada. Ela repreende e fala tudo aquilo que:
Eu devia me cuidar, correr na rua, alface e chicória no almoço e pro diabo com toda aquela cerveja.
Ela puxa um cigarro, acende e traga.
Isso não vai me matar duas vezes. Nem da primeira foi isso, foram meus pulmões asmáticos, explica. Eu não tiro o olhar dela e ela sorri. Quer ver como é que funciona?, e não me deixa responder. Ela põe a mão debaixo do seio (firme) e levanta a pele e os ossos e eu vejo aquela bomba metálica e os dois balões de festa cheios de algum gás leve pra que ela flutue. A bomba metálica se mexe bum, bash e pára de novo.
Ela solta a fumaça pro alto e eu presto atenção na minha comida. Tomo minha coca e só a calabresa da pizza. Guardo o resto e ela continua falando.
Daí eu me limpo, pego minhas coisas e faço tudo o aquilo que não
sexta-feira, 26 de outubro de 2007
Ladeira
Ele tinha uns dois metros e dez de altura e o que faltava em cabelo, sobrava em barba. Engraçado que ele lembrava um personagem de um livro. Talvez fosse o cara do livro que lembrava ele, mas isso é de tal sorte complexo que desanima pensar. A conclusão mesmo é que ele podia muito bem ser um personagem - mas quem, pitoresco ou não, não o é?
E vínhamos subindo aquela puta ladeira, coisa triste aquela hora da madruga, aquela puta ladeira e uma chuva fria. Acrescente dez, vinte, mil cervejas, sabedeus o quanto, e temos um cenário REALMENTE deprimente.
Que merda, cara, ele disse esfregando a mão no rosto, tateando óculos, água, barba, Merda.
O lance dele era nada de mais. Misérias normais, como as minhas e as tuas, só que naquele ponto ou temos tudo claro e resolvido, ou temos um mistério insolúvel. Ele tava no mistério insolúvel, autocrítica & autopiedade, e eu sem saco de bancar o dizedor de “tudo vai se resolver, cara, tudo vai”.
Ladeira cerveja chuva lamento madruga. Num falei nada e ele ‘Que merda, cara, merda’ e eu subindo, dois passos meus pra cada um dele.
Daí ele para. Eu olho. Deita no meio da rua, aquele corpo enorme nas duas pistas.
Me leva! Me leeeeeeeeeeeeva! e eu rio.
Ele não levanta e eu me sento ainda rindo, Me leva!, Me leva!. Não respondi, num era comigo. Só podia ficar rindo, aquele gigante horizontal clamando por um carro em alta velocidade.
Me leeeeeva!, mais rouco e desanimado, Me leeeeeeeeva!, quase um uivo.
Não levou.
Levantei, ele também, olho no olho, sorriso na cara.
Que merda, cara, merda, eu disse.
Ele: ‘vai tudo resolver, cara,
tudo vai’.
E vínhamos subindo aquela puta ladeira, coisa triste aquela hora da madruga, aquela puta ladeira e uma chuva fria. Acrescente dez, vinte, mil cervejas, sabedeus o quanto, e temos um cenário REALMENTE deprimente.
Que merda, cara, ele disse esfregando a mão no rosto, tateando óculos, água, barba, Merda.
O lance dele era nada de mais. Misérias normais, como as minhas e as tuas, só que naquele ponto ou temos tudo claro e resolvido, ou temos um mistério insolúvel. Ele tava no mistério insolúvel, autocrítica & autopiedade, e eu sem saco de bancar o dizedor de “tudo vai se resolver, cara, tudo vai”.
Ladeira cerveja chuva lamento madruga. Num falei nada e ele ‘Que merda, cara, merda’ e eu subindo, dois passos meus pra cada um dele.
Daí ele para. Eu olho. Deita no meio da rua, aquele corpo enorme nas duas pistas.
Me leva! Me leeeeeeeeeeeeva! e eu rio.
Ele não levanta e eu me sento ainda rindo, Me leva!, Me leva!. Não respondi, num era comigo. Só podia ficar rindo, aquele gigante horizontal clamando por um carro em alta velocidade.
Me leeeeeva!, mais rouco e desanimado, Me leeeeeeeeva!, quase um uivo.
Não levou.
Levantei, ele também, olho no olho, sorriso na cara.
Que merda, cara, merda, eu disse.
Ele: ‘vai tudo resolver, cara,
tudo vai’.
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Gulliversalizando
As vezes queria ficar pequeno, bem pequenino, que coubesse debaixo do armário.
Daí lá de baixo bem escondido e encontrado, ver o mundo na sua magnitude e as pequenas coisinhas engrandecidas -nada como uma mudança no ponto de vista para colocar as coisas em perspectiva.
E, protegido de abraços, mentiras e beijos; escondido lá, meio homem, meio embrião, qualquer coisa de covarde, ensimesmado naquela velha metáfora de pequenitude, pensava que as vezes queria ficar pequeno.
Daí lá de baixo bem escondido e encontrado, ver o mundo na sua magnitude e as pequenas coisinhas engrandecidas -nada como uma mudança no ponto de vista para colocar as coisas em perspectiva.
E, protegido de abraços, mentiras e beijos; escondido lá, meio homem, meio embrião, qualquer coisa de covarde, ensimesmado naquela velha metáfora de pequenitude, pensava que as vezes queria ficar pequeno.
quarta-feira, 19 de setembro de 2007
Nóia II
Ele estava lá esperando. Mão esquerda no bolso, a direita arrumando o impecável cabelo. Pigarreou, umedeceu os lábios, estampou um sorriso de canto de boca.
É sua vez, doutor.
Fez uma imagem mental de si mesmo e, satisfeito, entrou encarando o seu auditório. Acenou para as fileiras da frente com humildade fingida, sorriu para todos e começou:
Caros senhores...
Ele os tinha em suas mãos. Cada movimento, cada inflexão na voz, cada piada casual, tudo isso exaustivamente treinado para que parecesse fácil. E o texto, ah! que texto. Estava oferecendo nada menos que A palestra de suas vidas.
Mão esquerda no bolso, a direita falando junto com as palavras, desenvolvia o discurso, cada vez mais claro, mais belo.
Chegava ao ápice, a platéia atenta:
O que nos leva a crer...
E nesse ponto, por descuido, escorregou a mão esquerda pra fora do bolso.
Calou-se.
Olhou pra platéia embasbacada. Aqui e ali podia perceber o asco de seu auditório.
Olhou para a mão, com seus sete dedos, e riu nervoso, o riso ecoando no sepulcral silêncio.
Olhou para o alto, respirando fundo para não chorar.
E então, com um leve cutucar na nuca, desapareceu como se nunca houvesse existido homem, nem mão, nem dedo.
E que alívio se operou na platéia.
É sua vez, doutor.
Fez uma imagem mental de si mesmo e, satisfeito, entrou encarando o seu auditório. Acenou para as fileiras da frente com humildade fingida, sorriu para todos e começou:
Caros senhores...
Ele os tinha em suas mãos. Cada movimento, cada inflexão na voz, cada piada casual, tudo isso exaustivamente treinado para que parecesse fácil. E o texto, ah! que texto. Estava oferecendo nada menos que A palestra de suas vidas.
Mão esquerda no bolso, a direita falando junto com as palavras, desenvolvia o discurso, cada vez mais claro, mais belo.
Chegava ao ápice, a platéia atenta:
O que nos leva a crer...
E nesse ponto, por descuido, escorregou a mão esquerda pra fora do bolso.
Calou-se.
Olhou pra platéia embasbacada. Aqui e ali podia perceber o asco de seu auditório.
Olhou para a mão, com seus sete dedos, e riu nervoso, o riso ecoando no sepulcral silêncio.
Olhou para o alto, respirando fundo para não chorar.
E então, com um leve cutucar na nuca, desapareceu como se nunca houvesse existido homem, nem mão, nem dedo.
E que alívio se operou na platéia.
Nóia
Terminou de falar.
Os dois homens o olhavam como se esperassem por mais.
Sorriu amarelo e disse ‘Acabou’.
Eles não disseram nada; eram só olhos, nenhuma boca.
Fechou o sorriso e passou a língua na gengiva, percebendo os pontos em que sangrava.
Eles ainda não diziam nada, o da esquerda suspirou fundo.
Notou na frente da boca um dente frouxo. Balançou-o pra frente e pra trás distraído, só percebendo quando soltou. Desesperou-se e no desespero engoliu toda a saliva e sangue e dente.
-É somente isso. Obrigado, falaram os dois como um monstro bicéfalo.
Levantou-se sem abrir a boca. Correu o mais que pode, tentando não chamar atenção.
A da direita, Apressado?
Balançou a cabeça concordando.
A da esquerda, sorrindo, Mas pra quê?
Caiu sobre si o inevitável. Coisas, disse, expondo o buraco grotesco da ausência do dente, Coisas a serem feitas. Deu-lhes as costas e saiu em passos miúdos.
Naquele momento teve a certeza de que sua presença era somente tolerada.
Os dois homens o olhavam como se esperassem por mais.
Sorriu amarelo e disse ‘Acabou’.
Eles não disseram nada; eram só olhos, nenhuma boca.
Fechou o sorriso e passou a língua na gengiva, percebendo os pontos em que sangrava.
Eles ainda não diziam nada, o da esquerda suspirou fundo.
Notou na frente da boca um dente frouxo. Balançou-o pra frente e pra trás distraído, só percebendo quando soltou. Desesperou-se e no desespero engoliu toda a saliva e sangue e dente.
-É somente isso. Obrigado, falaram os dois como um monstro bicéfalo.
Levantou-se sem abrir a boca. Correu o mais que pode, tentando não chamar atenção.
A da direita, Apressado?
Balançou a cabeça concordando.
A da esquerda, sorrindo, Mas pra quê?
Caiu sobre si o inevitável. Coisas, disse, expondo o buraco grotesco da ausência do dente, Coisas a serem feitas. Deu-lhes as costas e saiu em passos miúdos.
Naquele momento teve a certeza de que sua presença era somente tolerada.
segunda-feira, 27 de agosto de 2007
Confissões de um mentiroso
Essa vida é baseada em fatos normais.
Normalíssimos.
(Que mal há nisso?
Há também em Prosa e Poesia
tanta coisa banal)
E nessa obra que se adapta
,minha ficção da sua ficção
da minha,
nada de hipérbatos, zeugmas, metáforas
profundos paradoxos.
E ainda assim
se bem contada
que história não daria!
Normalíssimos.
(Que mal há nisso?
Há também em Prosa e Poesia
tanta coisa banal)
E nessa obra que se adapta
,minha ficção da sua ficção
da minha,
nada de hipérbatos, zeugmas, metáforas
profundos paradoxos.
E ainda assim
se bem contada
que história não daria!
sábado, 25 de agosto de 2007
Cinemação
(interior dia ou noite, tanto faz, é um metrô)
Perfeitamente blasé
a bela personagem
lê Niet-z-s-che e outras estórias
igualmente trágicas
na lotação
Perfeitamente incompreensível
(ar de idéia moleca-
intelectual)
rabisca o livro, bufa,
vira página
Perfeitamente nua
debaixo daquela roupa
que nem era tanta
tanta tenta ação
Perfeitamente blasé
a bela personagem
lê Niet-z-s-che e outras estórias
igualmente trágicas
na lotação
Perfeitamente incompreensível
(ar de idéia moleca-
intelectual)
rabisca o livro, bufa,
vira página
Perfeitamente nua
debaixo daquela roupa
que nem era tanta
tanta tenta ação
quarta-feira, 22 de agosto de 2007
Pó a pó
Então sento eu e uma amiga lado a lado no mesmo banco de ônibus. A conversa vai em tons mais ou menos conhecidos, humor de piada boa que já se conhece; riso, não gargalhada. Papo vai e vem e vai de novo quando no canto do olho está lá, uma menina chorando. Não aquele choro discreto, mas copioso e soluçante, transbordante tristeza.
Foi-se o papo.
Minha amiga bem que falava, mas eu não ouvia. Nem via. Era tudo só aquela garota chorando, nó na garganta, altivez&dignidade zero, só sofrimento que não cabe em si. Olhava indisfarçado, vidrado. Ela, por sua vez, nem ligava, seus olhos brilhando de dor.
Queria ela para mim. Abraçar e dizer que está tudo bem. Beijar sua testa, terno, meio-amante e meio-pai, amigo “conte comigo pro que vier” e tudo mais. Seu rosto já seco em minha camisa encharcada, seus bracinhos na minha cintura, meu nariz no seu cabelo.
E ela desceu.
Foi-se o papo.
Minha amiga bem que falava, mas eu não ouvia. Nem via. Era tudo só aquela garota chorando, nó na garganta, altivez&dignidade zero, só sofrimento que não cabe em si. Olhava indisfarçado, vidrado. Ela, por sua vez, nem ligava, seus olhos brilhando de dor.
Queria ela para mim. Abraçar e dizer que está tudo bem. Beijar sua testa, terno, meio-amante e meio-pai, amigo “conte comigo pro que vier” e tudo mais. Seu rosto já seco em minha camisa encharcada, seus bracinhos na minha cintura, meu nariz no seu cabelo.
E ela desceu.
sábado, 10 de fevereiro de 2007
Da auto-ajuda à auto-piedade
(uma lição psicogeométrica)
só eu sou eu
eu só sou eu
eu sou só eu
eu eu sou só
*****************
Ps. Poema antigo reformulado
só eu sou eu
eu só sou eu
eu sou só eu
eu eu sou só
*****************
Ps. Poema antigo reformulado
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007
Auto-análise
Outro dia li meu último texto. O anterior a esse e o outro também. Li também o meu primeiro. Interessante: uma perspectiva literária de mim por mim. Uma melhora clara no texto, em estilo, vocabulário. Maturidade principalmente. Isso é nada mais que óbvio, considerando os cinco anos que me separam de minha primogênita criação –e cinco anos quando se tem quinze e depois vinte são uma vida inteira.
Mas o que me chamou atenção, digo, o que era gritante e saltava do texto para os meus olhos era que eu escrevia desde o princípio sobre a mesma coisa. Todos os meus textos me soam como uma replicação daquele primeiro, aquele primeiro poema, onde os versos sequer eram livres, aquelas parcas dezesseis linhas dizem tanto quanto posso dizer quem sabe até o fim da vida.
Ora, pensas tu, exagero! Não é. Em nuances e diferentes formas, em contos ou poesias ou crônicas ou o quer que o valha, leio sempre a mesma coisa, a mesma idéia, o mesmo adolescente encantado com um romance malfadado por sua natureza platônica. Encantado com amar por amar, como só dizemos na primeira vez.
E se não a tivesse amado? E se, no momento crucial, dissesse a mim mesmo, que não me valeria (como de fato, nada me valeu). Por que há um momento em que decidimos, um momento racional, e nesse instante perguntamos: amo ou não amo? E a resposta, e tanto faz se uma ou outra, é acolhida incondicionalmente, como lei natural.
E se não a tivesse amado? E se dissesse não –supondo que pudesse dizer não, não creio- sobre o que escreveria? Escreveria esse texto? Ou, por outra, não escreveria, nem verso nem linha. Nem uma só palavra sobre ela. Nem uma só palavra sobre mim. Uma folha em branco é o que diria ao mundo, e talvez rabiscasse desenhos, obscenos ou não. E se não a tivesse amado? O que então?
E se não a tivesse amado cinco verões atrás?
Talvez não escrevesse tanta besteira.
Mas o que me chamou atenção, digo, o que era gritante e saltava do texto para os meus olhos era que eu escrevia desde o princípio sobre a mesma coisa. Todos os meus textos me soam como uma replicação daquele primeiro, aquele primeiro poema, onde os versos sequer eram livres, aquelas parcas dezesseis linhas dizem tanto quanto posso dizer quem sabe até o fim da vida.
Ora, pensas tu, exagero! Não é. Em nuances e diferentes formas, em contos ou poesias ou crônicas ou o quer que o valha, leio sempre a mesma coisa, a mesma idéia, o mesmo adolescente encantado com um romance malfadado por sua natureza platônica. Encantado com amar por amar, como só dizemos na primeira vez.
E se não a tivesse amado? E se, no momento crucial, dissesse a mim mesmo, que não me valeria (como de fato, nada me valeu). Por que há um momento em que decidimos, um momento racional, e nesse instante perguntamos: amo ou não amo? E a resposta, e tanto faz se uma ou outra, é acolhida incondicionalmente, como lei natural.
E se não a tivesse amado? E se dissesse não –supondo que pudesse dizer não, não creio- sobre o que escreveria? Escreveria esse texto? Ou, por outra, não escreveria, nem verso nem linha. Nem uma só palavra sobre ela. Nem uma só palavra sobre mim. Uma folha em branco é o que diria ao mundo, e talvez rabiscasse desenhos, obscenos ou não. E se não a tivesse amado? O que então?
E se não a tivesse amado cinco verões atrás?
Talvez não escrevesse tanta besteira.
sábado, 3 de fevereiro de 2007
Nonsense
Igual todo o dia ele virou na mesma esquina. Igual todo dia embicou na contra-mão, aquele curtinho espaço que lhe poupava uns bons seis minutos. Igual todo dia tocou de leve a buzina pra não pegar ninguém desprevinido. Igual todo dia o mendigo olhou pra ele só de lado e bebeu mais um gole da sua garrafa de qualquer coisa.
Mas não era um dia igual os outros. Nasceu sob signo de capricórnio ou escorpião, com saturno passando pra trás vênus, marte, quiçá a terra, coisa dessas inexplicável desde o momento que nasce. Se tivesse lido o horóscopo no jornal, Tenente Moreira -que por sinal jamais haveria de ler o horóscopo nem que fosse a última coisa a ser lida em uma interminável ida ao banheiro- nada teria lido de auspicioso, por sinal. Era um dia de tal maneira diferente, que, transcendendo o transcendental, se deu a história mais ou menos assim:
Você está multado, disse o guardinha que parecia estar lá tão somente para fazê-lo e ir embora com a sensação de dever cumprido. Tentente Moreira cuja falta, a seu ver, jusficava-se pela freqüência por que se dava, argumentou que o guarda só poderia estar de sacanagem. Faço isso todo o dia, porra!
Excedeu-se no porra. Cidadão, praguejar não vai te ajudar não. Você estava errado! Não estava?
Era inútil dizer que não. Mas raciocínio afiado, orgulho de mamãe, pensou por outra via. Tava, tava errado sim. Mas você nunca está aqui!
Que diferença faria a ausência do guarda se dava mais ou menos na mesma linha de raciocínio que justificara a persistência do erro tão somente por sua inauguração. O guarda ainda assim dignou-se a responder: Senhor... Não me venha com desculpas. Eu estou aqui todo santíssimo dia. Mentira!
Verdade! Eu o vejo aqui todos os dias, interrompeu um senhor (até então) alheio à conversa. Velho filho da puta, pensou sem dizer Tenente Moreira.
Mas acudiu-lhe uma idéia quando já pensava estar tudo perdido, como luz em fim de túnel, como mais óbvia via: a carteirada! Afinal, não se tratava de um simples moreira. Quatro anos de academia o fizeram mais do que isso, o fizeram Barão em terra de silvas. E no bolso esquerdo da calça estava a prova documental, nome e foto três por quatro, cargo quartel e lá mais o quê.
Qual não foi sua surpresa quando após detido e cuidadoso exame o guardinha o olhou de alto a baixo e perguntou: Que quer que se faça com isso? Bolas, sou militar! E a multa com isso? Militar, porra! Mi - li - tar!
E a senhora que passava curva pela idade e peso das compras irritada: Tanto se nos dá que sejas militar! És milico, somos civis! Hás de nos dar umas porradas?!? Percebes que teus tempos já se foram?, e antes que lhe pudesse responder, pega tua carteirinha e já lhe digo onde a enfias!
Escandalizado Tentente Moreira pegou-a de volta das mãos do guarda e enfiou no bolso sem reparar que amassava. Já sem nervos ou opções, aceitou estóico: dá logo a multa, não faz mais que a obrigação, estava errado, estás certo, acabe isso de uma vez logo! O guarda sacou sua caneta triunfante enquanto recolhia os dados necessários, placa modelo motorista.
E o mendigo tomou outro gole de sua qualquer coisa e só agora se podia reparar que percebia atento o que se dava, sem emitir juízo maior do que o franzir de sobrancelhas. Até agora...
Levantou-se deixando para trás suas parcas coisas, e num salto alcançou o topo de um fradinho. Virou-se eloqüente para sua multidão de passantes e disse:
Foi sem acidentes que se deu essa anti-cidadã atitude de nosso vulgo Tenente Moreira. E, vil criatura, de culpa assinada, tentava convencer o juiz máximo de sua inocência por seu repulsivo e insistente maucaratismo! Mas e se, obra de acaso, metesse o carro sobre inocente e vagabundo cão? E se, veloz demais, não puder frear e der cabo da senhora que carrega suas compras, esborrachando-a com seus tomates em homogênea massa? E se, ó impiedoso Deus, a ditraída criança não percebe o buzinar? Que havia de ser de nosso mundo fossemos todos tententes moreiras alheio aos outros e só consigo se importar-nos?!?
E, virando-se para o carro, A multa lhe cai bem? Pois ela só não o ensina! Eu o sentencio!
E a turba (que nesse momento a multidão virou turba nas mãos de alquímico retórico) veio a si, pantagruélico animal, envolvendo e devorando o carro. Calotas sem roda, capô sem um carro, motor sem bateria e mais... Para brisa sem vidros e o puxam pra fora. A sentença está feita e Tentente Moreira chora arrependido. Numa mordida se arrancam dois dedos, e vão ser chupados até os ossos. A cabeça já não tem um pescoço que lhe caiba e o maior quinhão é do Mendigo Rei. Os olhos são como uvas de desagradável gosto. O pau ostenta indeterminado gozo.
E quando não há mais nada, a turba volta a ser multidão. E a multidão segue seu caminho tranqüila, sensação de cumprido dever.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007
Hoje vai chover
Provável que fosse chover.
Melhor levar um guarda chuva, pensei. E levei.
E o trago comigo debaixo deste céu meio nublado –ou meio ensolarado, vulgar discurso de otimistas. E ando nas ruas à espreita, a espera de um pingo que precede a tromba d´água. Ele não vem.
Provável que fosse chover.
Foi o que disse a moça no jornal e toda a gente sabe muito bem que o tempo da metereologia imprecisa ficou pra trás há muito. Hoje as chances são de 99.9% e se erra uma vez em mil é infinitamente improvável que o faça no dia em dez anos que resolvi dar atenção ao que dizia.
Mas ainda não choveu.
Nem um pingo me consola. Nem um cuspe descuidado. Nem a água das plantas do terceiro andar de um prédio. Nem uma merda de passarinho, nada cai do céu.
Provável que fosse chover.
Ela me jurou. Em um tom (in)confidente, disse que chovia na cidade inteira. Mentira deslavada! Inverdade documentada! Inverossímil palpite! Faz-me de tolo com o guarda chuva ainda mais seco que quando saiu de casa. Toma-me por sonso, figura ridícula: debaixo do braço o guarda chuva e nem vestígio no céu do sobrenome deste.
Mas não fica por isso, silenciosa revolta, fico mais dez anos sem vê-la, e mais dez depois disso. Aí quero ver como ficas. Sem a mim e outros tantos traídos, guarda chuvas à postos juntando poeira da rua.
E um leve cutucar no ombro me chama atenção. Vem do alto, não detrás.
Ah! Torrencial chuva...
Melhor levar um guarda chuva, pensei. E levei.
E o trago comigo debaixo deste céu meio nublado –ou meio ensolarado, vulgar discurso de otimistas. E ando nas ruas à espreita, a espera de um pingo que precede a tromba d´água. Ele não vem.
Provável que fosse chover.
Foi o que disse a moça no jornal e toda a gente sabe muito bem que o tempo da metereologia imprecisa ficou pra trás há muito. Hoje as chances são de 99.9% e se erra uma vez em mil é infinitamente improvável que o faça no dia em dez anos que resolvi dar atenção ao que dizia.
Mas ainda não choveu.
Nem um pingo me consola. Nem um cuspe descuidado. Nem a água das plantas do terceiro andar de um prédio. Nem uma merda de passarinho, nada cai do céu.
Provável que fosse chover.
Ela me jurou. Em um tom (in)confidente, disse que chovia na cidade inteira. Mentira deslavada! Inverdade documentada! Inverossímil palpite! Faz-me de tolo com o guarda chuva ainda mais seco que quando saiu de casa. Toma-me por sonso, figura ridícula: debaixo do braço o guarda chuva e nem vestígio no céu do sobrenome deste.
Mas não fica por isso, silenciosa revolta, fico mais dez anos sem vê-la, e mais dez depois disso. Aí quero ver como ficas. Sem a mim e outros tantos traídos, guarda chuvas à postos juntando poeira da rua.
E um leve cutucar no ombro me chama atenção. Vem do alto, não detrás.
Ah! Torrencial chuva...
Peixe Poesia Peixe
peixe peixe poesia
jaz mudo em aquário mundo.
peixe peixe poesia
o gato comeu sua língua?
era angorá bonito
e se enroscava em minha perna (bamba)
era siamês despótico
e em seu carinho afago
com as garras me feria as costas
peixe peixe poesia
em meu lugar, o que farias?
peixe peixe poesia
muito sinto ou sinto muito
mas peixe dourado é churrasco pra gato
peixe peixe poesia
o gato comeu minha fantasia...
jaz mudo em aquário mundo.
peixe peixe poesia
o gato comeu sua língua?
era angorá bonito
e se enroscava em minha perna (bamba)
era siamês despótico
e em seu carinho afago
com as garras me feria as costas
peixe peixe poesia
em meu lugar, o que farias?
peixe peixe poesia
muito sinto ou sinto muito
mas peixe dourado é churrasco pra gato
peixe peixe poesia
o gato comeu minha fantasia...
domingo, 28 de janeiro de 2007
Pudico
Quando pequeno foi um garoto igual aos outros. Em um sentido estritamente biológico, como poderemos perceber. Era rapaz de muito recato social e de pudor hiperbólico, como haveremos de constatar. E isso é só o que nos concerne de sua pequenitude.
Não creio ter me feito entender quando mencionei seu "pudor hiperbólico". Não creio tampouco fazê-lo ao exemplificar, sendo esse um dos casos de ver para crer, e, mesmo crendo, de surpreender-se quando a verdade em latência -a palavra- torna-se, de fato, ação.
Sem mais delongas para que não te chateies com demasiado longas frases que rodeiam o assunto -como, tomo por provável, ser essa uma delas- vamos aos fatos:
Era caso de o rapaz ser a tal ponto preocupado com todas as naturais excrecências humanas e, talvez, de tomá-las antes por escatológicas a tal ponto de envergonhar-se perante o outro de sua própria, ignorando ser o outro não mais que pessoa humana. Exagero pensar que lhe fosse plausível aos outros não ter, também, com o perdão da palavra, um cu. Não como o seu, epítome do nojo, a despejar impropriedades, qual criança desbocada, ao vaso e depois ao oceano. Isso para não imaginar o que pensava o pobre acerca de sua urina e suor que, se por instruídos sabemos de suas utilidades para o organismo vivo e que, em caso de falta, morreríamos -e, nesse ponto, não justifiquemos seus hábitos por ignorância, pois como nós também o rapaz fora instruído- ele, não obstante, cria mais na sua repugnância que em sua utilidade.
Nesse ponto um leitor mais analítico, como desses acostumados ao jornal, indagar-se-ia, como pode um homem adivinhar o que se passa na cabeça de outro com tal grau de detalhismo ou, ao menos, precisão. A esses vos digo, primeiramente, que habitual é ao gênero humano tomar o outro como simples sistema e, assim, tirada uma conclusão, tomá-la como mais óbvia verdade e certeza que Deus nos deu. Assim, se calhasse encontrar de fato tal criatura e a tivesse julgado dessa maneira, verdade seria para mim e para si, se lhes dissesse ter um mínimo de procedência. Em segundo lugar, gostaria de citar que há profissonais que ganham, em maior ou menor medida, a vida a adivinhar os medos, vontades e razões do outro, sem que lhe façam objeção posto que são pagos, a saber os psicanalistas e toda a estirpe de psi -um dia hei de resolver e cobrar eu mesmo por minhas palavras. Ademais, e este argumento é, por sinal, supremo em texto, em se tratando de uma literatice, uma cria de insone noite, é minha criança e por mim de todo criada, visando um texto (válido lembrar) meu e imprópria lição de moral. Por sinal, minha.
Isto posto, posto isto, retomemos o que antes vinha. Era de tal forma convencido de sua (im)própria imundice que escusava aos outros tomarem ciencia dela. Era sua rotina acordar antes que os outros três horas e, somente após verificar a ausência de um possível insone, seu companheiro em não dormir, ia ao banheiro aliviar suas tripas e bexiga. Posteriormente, tomava um banho com o cuidado de não muito olhar para o corpo, perene lembrança de sujeira e cobria a si por duas vezes e depois de salpicar de perfume, ainda outra vez, de um desodorante que impedia sua transpiração ao longo do dia -a custo de que malefícios ao seu corpo, jamais poderíamos saber, nunca preocupou a ciência determinar conseqüências de uma overdose de desodorante; mais provável é que algum dia, qual tudo na vida, lhe rendesse um excelente câncer nalgum lugar que calhasse reproduzir as células loucamente. Fora essa ocasião de alívio, o resto do dia prendia tudo que lhe fosse possível e o corpo, anos e anos treinado para tal feito, já não reclamava desse ritual matutino e matutino apenas.
Ah!, pensaram alguns, só pode fazê-lo por ser ficção. Que faria uma pessoa de fato humana, de osso carne e nervos, suscetível a uma constipação ou, pelo contrário, como se diz popularmente, cagalheira, aí não poderia ir ao trono somente de acordo com sua própria idéia, vontade e conveniência, e então, o que faria? Digo primeiro: que seja ficcional, vá lá, mas que se preze pela verossimilhança, então vos ofereço explicação: nesses casos, entrava e não havia quem o tirasse do toalete enquanto não estivessem todos a dormir. Aos que não se convenceram, por outro lado, e em respeito às senhoras suas mães, por certo gente de muito fina educação, a despeito de suas pessoas, escuso-me de chamá-los filhos de meretrizes sujas e detentoras de gota, mas não de mandá-los, por gentileza, à merda.
Outro problema a ser resolvido, pensam os homens que já foram algum dia rapazolas, é de como fora sua descoberta de sexualidade, tendo tanto nojo de si e de flúidos que de si viessem. Seu culto onanístico era por certo em menor freqüência que o da maior parte de vós. E se dava de acordo com seus estranhos costumes: a olhos fechados, mão enluvada e papel pronto a aparar qualquer que fosse que partisse de seu sim senhor.
Para resumir não tarde demais a prosa de seus costumes, usarei frase de um colega: "Este não peida nem em elevador vazio.", que, não tomem como apologética ao ato em si, reprovável e condenável, a meu ver, mas como metáfora para o seu comportamento.
Exposto de tal maneira, com tanta crueza e ênfase não no que assemelhava seu cotidiano ao das pessoas ditas normais, mas nos hábitos -ou vícios, que se arrisque a decidir quem souber a diferença- que o diferem e o tornam figura talvez mesmo caricata; assim exposto, parecerá improvável, e de fato o foi, que alguém por ele se enamorasse e ainda mais que fosse moça de vontades e desejos absolutamente normais (em um sentido que transcende o biológico). Devo dizer, no entanto, que não nos cabe descobrir os desígnios e razões dessa palavra que encerra muito mais que suas meras quatro letras, o amor, se me permitem algum lirismo.
O fato é que se apaixonou ela por ele e ele por ela como se dá vez por outra também no mundo real, além dos contos de fadas, onde a exceção é nossa regra.
O romance, obviamente, por outras vias correu que não as usuais, mantendo-se em vista a singularidade de nosso Romeu. Assim, os caminhos que percorremos primeiro ao toque de mãos e depois de linguas depois ao mais íntimo deles, transcorreu de forma irremediavelmente lenta. A própria Julieta em questão viu-se obrigada a romper o paradigma, se é que este ainda há, e foi pró-ativa ela mesma, fazendo mais que somente insinuar-se e passasse a agarrões cada vez mais ousados.
Até o dia que se fez inexorável desde a primeira faísca na troca de olhares. Ia fazer-se homem já uns sete ou oito anos tarde demais e necessário seria mostrar-se ao menos parcialmente nu frente sua parceira. Ela, entretanto, não admitiu parcialidade e o pôs de todo nu e acuado na cama, depois de despir-se ela mesma. Então o inevitável: a mão aqui, a língua ali e sabe lá Deus onde estaria o resto naquele monstro insurgente de oito patas e duas cabeças tremelicando convulsivo.
E já não sentia mais que naturalidade do que outrora lhe fora custoso aceitar. Fora de todo humano sem ser animal e agora era todo sentidos sem ser razão.
E no instante do mais pleno gozo, peidou estrondoso e satisfeito.
sábado, 27 de janeiro de 2007
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