sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Ladeira

Ele tinha uns dois metros e dez de altura e o que faltava em cabelo, sobrava em barba. Engraçado que ele lembrava um personagem de um livro. Talvez fosse o cara do livro que lembrava ele, mas isso é de tal sorte complexo que desanima pensar. A conclusão mesmo é que ele podia muito bem ser um personagem - mas quem, pitoresco ou não, não o é?
E vínhamos subindo aquela puta ladeira, coisa triste aquela hora da madruga, aquela puta ladeira e uma chuva fria. Acrescente dez, vinte, mil cervejas, sabedeus o quanto, e temos um cenário REALMENTE deprimente.

Que merda, cara, ele disse esfregando a mão no rosto, tateando óculos, água, barba, Merda.

O lance dele era nada de mais. Misérias normais, como as minhas e as tuas, só que naquele ponto ou temos tudo claro e resolvido, ou temos um mistério insolúvel. Ele tava no mistério insolúvel, autocrítica & autopiedade, e eu sem saco de bancar o dizedor de “tudo vai se resolver, cara, tudo vai”.

Ladeira cerveja chuva lamento madruga. Num falei nada e ele ‘Que merda, cara, merda’ e eu subindo, dois passos meus pra cada um dele.

Daí ele para. Eu olho. Deita no meio da rua, aquele corpo enorme nas duas pistas.
Me leva! Me leeeeeeeeeeeeva! e eu rio.
Ele não levanta e eu me sento ainda rindo, Me leva!, Me leva!. Não respondi, num era comigo. Só podia ficar rindo, aquele gigante horizontal clamando por um carro em alta velocidade.
Me leeeeeva!, mais rouco e desanimado, Me leeeeeeeeva!, quase um uivo.

Não levou.
Levantei, ele também, olho no olho, sorriso na cara.

Que merda, cara, merda, eu disse.
Ele: ‘vai tudo resolver, cara,
tudo vai’.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Eu

Eu escrivinhador
escrevinhador
escrevimiador
escrevi minha dor

e ainda dói pra burro

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Autocrítica

todo o apaixonado
é um poeta

a merda
é escreverem tão
tão mal

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Gulliversalizando

As vezes queria ficar pequeno, bem pequenino, que coubesse debaixo do armário.
Daí lá de baixo bem escondido e encontrado, ver o mundo na sua magnitude e as pequenas coisinhas engrandecidas -nada como uma mudança no ponto de vista para colocar as coisas em perspectiva.
E, protegido de abraços, mentiras e beijos; escondido lá, meio homem, meio embrião, qualquer coisa de covarde, ensimesmado naquela velha metáfora de pequenitude, pensava que as vezes queria ficar pequeno.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Nóia II

Ele estava lá esperando. Mão esquerda no bolso, a direita arrumando o impecável cabelo. Pigarreou, umedeceu os lábios, estampou um sorriso de canto de boca.

É sua vez, doutor.

Fez uma imagem mental de si mesmo e, satisfeito, entrou encarando o seu auditório. Acenou para as fileiras da frente com humildade fingida, sorriu para todos e começou:

Caros senhores...

Ele os tinha em suas mãos. Cada movimento, cada inflexão na voz, cada piada casual, tudo isso exaustivamente treinado para que parecesse fácil. E o texto, ah! que texto. Estava oferecendo nada menos que A palestra de suas vidas.
Mão esquerda no bolso, a direita falando junto com as palavras, desenvolvia o discurso, cada vez mais claro, mais belo.
Chegava ao ápice, a platéia atenta:

O que nos leva a crer...

E nesse ponto, por descuido, escorregou a mão esquerda pra fora do bolso.

Calou-se.
Olhou pra platéia embasbacada. Aqui e ali podia perceber o asco de seu auditório.
Olhou para a mão, com seus sete dedos, e riu nervoso, o riso ecoando no sepulcral silêncio.
Olhou para o alto, respirando fundo para não chorar.
E então, com um leve cutucar na nuca, desapareceu como se nunca houvesse existido homem, nem mão, nem dedo.

E que alívio se operou na platéia.

Nóia

Terminou de falar.
Os dois homens o olhavam como se esperassem por mais.
Sorriu amarelo e disse ‘Acabou’.

Eles não disseram nada; eram só olhos, nenhuma boca.
Fechou o sorriso e passou a língua na gengiva, percebendo os pontos em que sangrava.
Eles ainda não diziam nada, o da esquerda suspirou fundo.
Notou na frente da boca um dente frouxo. Balançou-o pra frente e pra trás distraído, só percebendo quando soltou. Desesperou-se e no desespero engoliu toda a saliva e sangue e dente.
-É somente isso. Obrigado, falaram os dois como um monstro bicéfalo.
Levantou-se sem abrir a boca. Correu o mais que pode, tentando não chamar atenção.
A da direita, Apressado?
Balançou a cabeça concordando.
A da esquerda, sorrindo, Mas pra quê?
Caiu sobre si o inevitável. Coisas, disse, expondo o buraco grotesco da ausência do dente, Coisas a serem feitas. Deu-lhes as costas e saiu em passos miúdos.

Naquele momento teve a certeza de que sua presença era somente tolerada.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Confissões de um mentiroso

Essa vida é baseada em fatos normais.
Normalíssimos.
(Que mal há nisso?
Há também em Prosa e Poesia
tanta coisa banal)

E nessa obra que se adapta
,minha ficção da sua ficção
da minha,
nada de hipérbatos, zeugmas, metáforas
profundos paradoxos.

E ainda assim
se bem contada
que história não daria!