sábado, 3 de fevereiro de 2007

Nonsense

Igual todo o dia ele virou na mesma esquina. Igual todo dia embicou na contra-mão, aquele curtinho espaço que lhe poupava uns bons seis minutos. Igual todo dia tocou de leve a buzina pra não pegar ninguém desprevinido. Igual todo dia o mendigo olhou pra ele só de lado e bebeu mais um gole da sua garrafa de qualquer coisa.
Mas não era um dia igual os outros. Nasceu sob signo de capricórnio ou escorpião, com saturno passando pra trás vênus, marte, quiçá a terra, coisa dessas inexplicável desde o momento que nasce. Se tivesse lido o horóscopo no jornal, Tenente Moreira -que por sinal jamais haveria de ler o horóscopo nem que fosse a última coisa a ser lida em uma interminável ida ao banheiro- nada teria lido de auspicioso, por sinal. Era um dia de tal maneira diferente, que, transcendendo o transcendental, se deu a história mais ou menos assim:
Você está multado, disse o guardinha que parecia estar lá tão somente para fazê-lo e ir embora com a sensação de dever cumprido. Tentente Moreira cuja falta, a seu ver, jusficava-se pela freqüência por que se dava, argumentou que o guarda só poderia estar de sacanagem. Faço isso todo o dia, porra!
Excedeu-se no porra. Cidadão, praguejar não vai te ajudar não. Você estava errado! Não estava?
Era inútil dizer que não. Mas raciocínio afiado, orgulho de mamãe, pensou por outra via. Tava, tava errado sim. Mas você nunca está aqui!
Que diferença faria a ausência do guarda se dava mais ou menos na mesma linha de raciocínio que justificara a persistência do erro tão somente por sua inauguração. O guarda ainda assim dignou-se a responder: Senhor... Não me venha com desculpas. Eu estou aqui todo santíssimo dia. Mentira!
Verdade! Eu o vejo aqui todos os dias, interrompeu um senhor (até então) alheio à conversa. Velho filho da puta, pensou sem dizer Tenente Moreira.
Mas acudiu-lhe uma idéia quando já pensava estar tudo perdido, como luz em fim de túnel, como mais óbvia via: a carteirada! Afinal, não se tratava de um simples moreira. Quatro anos de academia o fizeram mais do que isso, o fizeram Barão em terra de silvas. E no bolso esquerdo da calça estava a prova documental, nome e foto três por quatro, cargo quartel e lá mais o quê.
Qual não foi sua surpresa quando após detido e cuidadoso exame o guardinha o olhou de alto a baixo e perguntou: Que quer que se faça com isso? Bolas, sou militar! E a multa com isso? Militar, porra! Mi - li - tar!
E a senhora que passava curva pela idade e peso das compras irritada: Tanto se nos dá que sejas militar! És milico, somos civis! Hás de nos dar umas porradas?!? Percebes que teus tempos já se foram?, e antes que lhe pudesse responder, pega tua carteirinha e já lhe digo onde a enfias!
Escandalizado Tentente Moreira pegou-a de volta das mãos do guarda e enfiou no bolso sem reparar que amassava. Já sem nervos ou opções, aceitou estóico: dá logo a multa, não faz mais que a obrigação, estava errado, estás certo, acabe isso de uma vez logo! O guarda sacou sua caneta triunfante enquanto recolhia os dados necessários, placa modelo motorista.
E o mendigo tomou outro gole de sua qualquer coisa e só agora se podia reparar que percebia atento o que se dava, sem emitir juízo maior do que o franzir de sobrancelhas. Até agora...
Levantou-se deixando para trás suas parcas coisas, e num salto alcançou o topo de um fradinho. Virou-se eloqüente para sua multidão de passantes e disse:
Foi sem acidentes que se deu essa anti-cidadã atitude de nosso vulgo Tenente Moreira. E, vil criatura, de culpa assinada, tentava convencer o juiz máximo de sua inocência por seu repulsivo e insistente maucaratismo! Mas e se, obra de acaso, metesse o carro sobre inocente e vagabundo cão? E se, veloz demais, não puder frear e der cabo da senhora que carrega suas compras, esborrachando-a com seus tomates em homogênea massa? E se, ó impiedoso Deus, a ditraída criança não percebe o buzinar? Que havia de ser de nosso mundo fossemos todos tententes moreiras alheio aos outros e só consigo se importar-nos?!?
E, virando-se para o carro, A multa lhe cai bem? Pois ela só não o ensina! Eu o sentencio!
E a turba (que nesse momento a multidão virou turba nas mãos de alquímico retórico) veio a si, pantagruélico animal, envolvendo e devorando o carro. Calotas sem roda, capô sem um carro, motor sem bateria e mais... Para brisa sem vidros e o puxam pra fora. A sentença está feita e Tentente Moreira chora arrependido. Numa mordida se arrancam dois dedos, e vão ser chupados até os ossos. A cabeça já não tem um pescoço que lhe caiba e o maior quinhão é do Mendigo Rei. Os olhos são como uvas de desagradável gosto. O pau ostenta indeterminado gozo.
E quando não há mais nada, a turba volta a ser multidão. E a multidão segue seu caminho tranqüila, sensação de cumprido dever.